sexta-feira, 28 de maio de 2010

Revista Liberdades n. 4 - IBCCRIM - Editorial

BANALIZAÇÃO DE UM JULGAMENTO CRIMINAL

Dificilmente houve um julgamento criminal de tanta repercussão nos últimos anos como o caso envolvendo o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Durante os cinco dias de atividades em plenário, centenas de pessoas aglomeravam-se em volta do fórum de Santana, na capital paulista, com o intuito de presenciar e fazer parte daquele momento, de sentirem o gosto da vingança com a condenação anunciada mesmo antes dos trabalhos iniciados. Ademais, a cobertura dada pela mídia transformou mais um caso de homicídio, entre tantos que ocorrem no país, em verdadeiro espetáculo, com direito à demonização do advogado de defesa.

Inegável o interesse midiático no julgamento de crimes de competência do Tribunal do Júri, eis que, por sua peculiaridade, aguça a curiosidade popular, no entanto, por vezes, ultrapassam seu poder–dever de informar, transformando o plenário em espetáculo público, olvidando-se dos direitos constitucionais que ostenta o acusado, influenciando, inclusive, o dever de imparcialidade dos jurados – cidadãos leigos - no julgamento da causa.

A morte de uma criança inocente, principalmente pelo modo como aconteceu, está longe de ser um fato normal. Ao contrário, a vida humana é bem de enorme valor e deve ser respeitada. Quando acontece um crime de homicídio é natural o sentimento de revolta das pessoas, mas nada justifica as agressões verbais e físicas ao advogado de defesa, que estava ali, naquele momento, a defender um direito constitucional de todos os cidadãos: um julgamento justo dentro do contraditório e com a ampla possibilidade de defesa. O que levou aquela multidão a agredi-lo de forma tão intensa?

Não temos as respostas exatas, no entanto, podemos destacar dois pontos importantes: a falta de formação cidadã e o sensacionalismo utilizado na cobertura dos fatos. Primeiramente, ficou claro que o brasileiro ainda não assimilou os preceitos do Estado Democrático de Direito e não aceitou a condição de que TODOS devem ser tratados com dignidade no processo, por pior que seja a acusação. Em tese, ninguém é melhor ou pior no processo penal, ou seja, todos devem ter o mesmo tratamento digno. Até decisão condenatória com trânsito em julgado o acusado ostenta a condição de inocente e, durante a execução da pena, o então condenado deve ser tratado com respeito aos seus direitos fundamentais.

Mas parece que cada indivíduo insiste em dividir as demais pessoas entre boas e más. As boas são aquelas que não cometem crimes ou, se os praticam, não são tão graves assim. As más, ao contrário, devem apodrecer no fundo de uma cela sem direito a um julgamento justo. Entretanto, quais os critérios para se fazer essa distinção entre bonzinhos e malvados? Um casal que supostamente mata uma criança é pior que um governante que permite a morte de dezenas de cidadãos por falta de atendimento hospitalar? E aquele que desvia milhões das verbas públicas em proveito próprio, aumentando o rombo da dívida pública e impedindo investimentos na área social?

Como a população está condicionada a assimilar aquilo que a mídia despeja, sem refletir a respeito, Nardoni e Jatobá foram alçados à condição de seres indignos. Não poderiam sequer pensar em ter um advogado constituído, pois deveriam ser prontamente condenados e, se possível, executados em praça pública. O mais assustador é que, no mais das vezes, as impressões veiculadas pelos meios de comunicação proporcionam maior efeito na convicção dos jurados do que propriamente os elementos probatórios trazidos em plenário.

A falta do exercício da cidadania, aliada ao exagero injustificável da imprensa, provoca resultados prejudiciais ao processo democrático. Não se vê o advogado como agente fundamental para o funcionamento da Justiça, com a mesma importância do juiz e do promotor. Como já bem asseverou Francesco Carnelutti em As misérias do Processo Penal:
A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado. As pessoas não compreendem aquilo que de resto nem os juristas entendem; e riem, zombam e escarnecem. Não é um mister, que goza da simpatia do público, ainda do Cirineu. As razões, pelas quais a advocacia é objeto, no campo literário e também no campo litúrgico, de uma difundida antipatia, não são outras senão estas[1].
O próprio direito penal, em diversas situações, passa de instrumento de limitação do poder punitivo do Estado à ferramenta de vingança. É esta a idéia passada diariamente pela mídia sensacionalista.

Há muito o direito penal e o processo penal deveriam ser expostos ao público leigo como promotores dos valores essenciais à manutenção da democracia e da estabilidade social. Não é possível que os ideais do Iluminismo, que foram conquistados ao longo de séculos, sejam jogados no lixo pela falta de educação e cultura da população e pela ganância da mídia, que fatura milhões com o sensacionalismo barato. Os crimes devem ser noticiados da forma mais sensata, poupando os acusados da exposição desnecessária e não os julgando sem o devido processo legal. Não cabe à mídia (nem a alguns membros do Ministério Público!) julgar os acusados de um crime, esta é função do magistrado ou dos jurados. O ideal seria o processo se desenvolver apenas nos autos e somente ali as partes envolvidas poderiam se manifestar.

Desenvolver a cidadania e promover o Estado Democrático de Direito é tarefa de todos: Estado, mídia, escola, família e todas as demais instituições sociais. Com certeza, uma população formada por pessoas conscientes, capazes de viverem com autonomia, é um grande passo para uma sociedade mais harmoniosa, inclusive com menos crimes. Sem cidadania, os conflitos continuarão a acontecer e não haverá super-herói capaz de nos proteger dos vilões eleitos pela mídia.

São Paulo, 15 de maio de 2010.

João Paulo Orsini Martinelli
Coordenador-adjunto do Departamento de Internet do IBCCRIM

Regina Cirino Alves Ferreira
Coordenadora-adjunta do Departamento de Internet do IBCCRIM

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Outsiders - Howard Becker

Como prometido, segue o livro Outsiders, digitalizado, devidamente dividido conforme as apresentações do Grupo de Estudos:
Capítulos I e II
Capítulos III e IV
Capítulos V e VI
Capítulos VII e VIII
Capítulos IX e X

Utopia...

Ventana sobre la utopia

Ella está en el horizonte (...)

Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos.

Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá.

Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré.

¿Para que sirve la utopía?

Para eso sirve: para caminar.

(Eduardo Galeano - Las Palabras Andantes)

Jorge Drexler - Milonga del Moro Judio

Boa noite, com Drexler e uma manifestação de absoluto respeito à alteridade...

PS. Aprendi a postar os vídeos direto do YouTube, sem baixar o vídeo para o computador, e depois subi-lo ao blogspot. Um verdadeiro fenômeno.

Grupo de Estudos - Primeira Reunião

Foi um sucesso a primeira reunião do Grupo de Estudos.
Presentes, além de mim, Bruno Aguirre, Luiz, Giordano e Matheus, e definimos algumas diretrizes, além de já termos fixado prazo para a primeira atividade. Serão encontros semanais, com apresentação de trabalhos quinzenais, sempre às terças-feiras, 18hs, no "Botequim".
A primeira apresentação será feita pelo Giordano, dia 8 de junho. Para começar, os dois primeiros capítulos de Outsiders, de Howard Becker: 1. Outsiders (Definições de desvio; Desvio e as reações dos outros; Regras de quem?); 2. Tipo de desvio: um modelo sequencial (Modelos simultâneo e sequencial de desvio; Carreiras desviantes).
Até amanhã pretendo disponibilizar o livro , em português, digitalizado, aqui no blog mesmo. Enquanto isto, segue a versão em espanhol, em dois arquivos (Parte 1 e Parte 2).
Estamos todos otimistas.
Em tempo: tudo acompanhado por um belo Cohiba Robusto.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Grupo de Estudos

Hoje de manhã, na aula de Direito Penal III, na Fadisma, foi gestado um Grupo de Estudos de Criminologia. Inegável a influência que Salo de Carvalho tem nisso tudo, com seu entusiasmo e tesão acadêmicos. Grande parte das obras escolhidas, aliás, são do plano de aula de sua disciplina do Mestrado em Ciências Criminais da PUCRS. Sem saber, é o grande patrono desse espaço que pretende ser democrático, crítico e reflexivo.
O Grupo reúne-se hoje, pela primeira vez, às 18hs, no "Botequim", no Clube Caixeiral, na "boca" do Calçadão, e tem por nome provisório "Charuto, Whisky & Criminologia". A idéia é ser um ambiente descontraído de troca de idéias e experiências a partir de textos previamente selecionados.
Tanto para os alunos, como para mim, será um grande desafio, já que assumidamente sou um 'dogmático' seduzido pela criminologia. De início, a coisa andará meio desajustada, mas penso que conseguiremos, juntos, dar a forma que buscamos.
Importante frisar que se trata de um ambiente aberto a todos os interessados.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Antes de dormir, deixo dica de música de ótima qualidade.

Não consigo esquecer o brilhante recital do meu amigo-irmão Guilherme Pires Rosa, no Theatro 13 de Maio, no domingo 25 de abril.

No programa, duas árias que adoro. A primeira "Votre Toast", da ópera Carmem, de Bizet, que ele já cantara no mesmo Theatro, no recital de formatura, é brilhante.

A outra, "Largo al Factotum", ária da ópera O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, é a famosa música cantada por Pernalonga, pelo Pica-Pau, nos desenhos animados.

O primeiro vídeo é de Guilherme, cantando no concurso de canto de Trujillo, no Peru, em que obteve menção honrosa. O segundo vídeo é do barítono norte-americano Thomas Hampson.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sociopath Next Door - Meu Vizinho é um Psicopata

A respeito do último post, sobre um Mersault sem sentimentos e emoções, há a indicação de outra obra, publicada pela Editora Sextante, em 2010.
"Meu Vizinho é um Psicopata", da psicanalista Ph.D. Martha Stout, membro do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Harvard, tem nome de romance caça-níquel, mas é a tradução do consagradíssimo "Sociopath Next Door", da Editora Broadway, 2004, vencedor do prêmio Books for a Better Life, de 2006.
Nesta obra, que seguramente inspirou o festejado, mas não tão brilhante, best-seller nacional "Mentes Perigosas", a autora aponta que 1 em cada 25 americanos são portadores do chamado Transtorno de Personalidade Anti-Social, ou sociopatia. A versão traduzida optou pela denominação psicopatia, penso que pela carga negativa que a expressão traz consigo, com objetivos evidentemente comerciais.
O Transtorno de Personalidade Anti-Social (TPAS) caracteriza-se pela absoluta ausência de consciência, culpa ou remorso. Assim, o portador pode cometer crimes, sem que seus impulsos sejam freados por sentimentos comuns à maioria dos indivíduos. Lei as primeiras páginas do livro: http://www.livrariacultura.com.br/imagem/capitulo/22057235.pdf

domingo, 2 de maio de 2010

Dica de Leitura

Neste melancólico fim de domingo, em que meu time conquistou mais um GreNal mas não levou o título, resta-me deixa uma dica de leitura. É mais fácil compreender uma dilema existencial de Camus, do que o ingresso de Kleber Pereira, e não Andrezinho, no segundo tempo do jogo... enfim... c'est la vie.
Em "O Estrangeiro" (baixe aqui), Mersault é um protagonista despido de emoções ou sentimentos. A orelha do livro, assinada por Arthur Dapieve, relata, com acerto, que se trata de uma autobiografia do homem do século XX.
O primeiro parágrafo do romance já indica os dramas existenciais a serem experimentados pelo protagonista -e, por que não, por seus leitores:
Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
O conflito vivido por Mersault estabelece-se a partir do momento em que mata um árabe e todo o processo que sucede o homicídio, até o julgamento, a análise é pautada pela conduta de Mersault frente aos fatos da vida.
A obra é de relevo para as discussões penais, na medida em que é extremamente comum a criminalização de determinados indivíduos, em razão do estrato social a que pertencem, ou em razão de uma forma de agir/pensar diferente daquela da "média" (leiam-se, aqui, certos conceitos de média, bom, belo, justo, como sendo aqueles assim definidos por uma classe pequena, detentora do poder, a que pertencem magistrados, legisladores, e outros empresários morais).
Mersault é estrangeiro não em razão de sua procedência, mas em razão de seu agir/pensar diferente daquele que se esperava para a sociedade da época. É por isto que foi julgado.
O romance, de fácil leitura instiga profundas discussões, e dele se originaram duas grandes músicas: "Killing an Arab", do The Cure (http://www.youtube.com/watch?v=BD1uGPkxQfA); e "Bohemian Rhapsody", do Queen(http://www.youtube.com/watch?v=2omuoO_hIbQ).

sábado, 1 de maio de 2010

"Doze Homens e Uma Sentença"

Na tarde deste sábado, o Telecine Action passou a refilmagem do clássico "Doze Homens e Uma Sentença" ("Twelve Angry Men").
De tamanha profundidade como no original, de 1957, o filme de 1997 retrata as discussões dos doze jurados de um jovem porto-riquenho, acusado de ter matado o pai.
Quando ingressam na sala secreta, onze jurados tem a convicção (ou a pré-convicção) da culpa do acusado. O único jurado que manifesta dúvida razoável é alvo da repreensão dos demais.
Os conflitos e os preconceitos de cada jurado tomam conta dass discussões, e demonstram a aleatoriedade da justiça criminal, bem como a fragilidade da produção da prova como elemento de construção de uma verdade única.
Trata-se de obra indispensável tanto para a discussão da dualidade entre prova x verdade, mas essencialmente para demonstrar a absoluta ausência de alteridade do sistema penal, que se caracteriza, tanto lá, como aqui, como instrumento de estigmatização, de produção de exclusão e de imposição de uma moral coletiva burguesa sobre uma imensa massa de isolados deste núcleo de poder.

Presídios

Na última sexta-feira conseguimos agendar a visita de uma turma da Fadisma para o Presídio Central, em Porto Alegre.
Espero que possamos fazer desta visita uma atividade permanente para os terceiros semestres da Fadisma.
Quando aventamos da possibilidade desta viagem, os alunos pediram muito que fosse incluída a PASC, em razão de toda a 'mística' que a cerca (presídio do Papagaio, do Seco, etc.).
Eu, diferentemente, fiz questão de incluir o Presídio Central, para que nossos alunos tenham o choque de realidade que temos todos nós, no dia-a-dia da prática penal.
De nossas casas, isoladas e protegidas, é fácil sustentarmos um discurso hipócrita punitivista. Mas será que, após conhecer esta realidade, ele se mantém?
Se um único aluno, na volta, se prestar a refleti-lo, terá sido de imenso proveito.
E justamente, tratando desta viagem, algumas ideias surgem, para, quem sabe, escritos futuros.
Não há a menor dúvida da intenção/pretensão/presunção do ordenamento jurídico brasileiro obter, com a pena, a ressocialização do agente: "Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime".
Também pode ser visto, quando, no artigo 61, a primeira circunstância que sempre agrava a pena é a reincidência.
Diante disto, questiono-me sobre a legitimidade do Estado em buscar a ressocialização do indivíduo. Uma vez separado o direito da moral, é direito do indivíduo reiterar tantas vezes quantas quiser na prática delitiva. É direito, do Estado, por seu turno, puni-lo em todas essas vezes.
Agora, não parece nada razoável que o Estado defina como diretriz a ressocialização, dentro de uma das manifestações da prevenção do crime, não dê meio algum para que o apenado ressocialize-se, e ainda o puna pela reincidência.
É extremamente difícil ressocializar pessoas que nunca foram socializadas, que sempre viveram à margem da sociedade. Comprei ontem na Feira do Livro de Santa Maria dois livros que são indispensáveis em uma biblioteca de ciências sociais. O primeiro, que já tinha lido por indicação do Salo de Carvalho, em sua disciplina no Mestrado em Ciências Criminais, mas que ora vem traduzido, pela Editora Zahar, Outsiders, de Howard Becker, em que traça um estudo sobre o comportamente desviante; e Vidas Desperdiçadas, de Zygmunt Bauman, também publicado pela Zahar, em que trata da produção em massa de refugos humanos, na sociedade atual.
É mais do que hora de refletirmos sobre o que estamos produzindo em nossos cárceres.
É necessário repensar toda a questão social, todo o punitivismo que assola essa sociedade moderna/pós-moderna/hipermoderna/de consumo/de risco, etc. A situação chega a um ponto, em que - como Salo refere no seu ótimo antiblog - há livros de auto-ajuda ao futuro preso e seus familiares.
Não basta que apenas criemos mais e mais vagas prisionais, porque quanto mais vagas forem criadas, mais prisões serão autorizadas.
Quanto mais penso, mais lembro de Simão Bacamarte em O Alienista. A Casa Verde está aí, cada vez mais inchada, mais aberta aos loucos, mas, como diz Sartre, o inferno são os outros, sempre.