terça-feira, 29 de março de 2011

Visita à Penitenciária Estadual de Santa Maria: Jardineiros de Vidas Humanas


“Não sei de nenhuma outra forma de advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia criminal. Tudo nela é dor e desespero. Os próprios triunfos têm seu tanto de amargor, porque, enquanto pende o processo e se prepara a causa, há sofrimento que a vitória não apaga completamente.”

           No último dia 16 de março, a OAB foi convidada a participar da inspeção do CNJ à Penitenciária Estadual de Santa Maria, ainda não oficialmente inaugurada, mas já em pleno funcionamento, por conta da necessidade de alocar presos que se amotinaram em janeiro, no Presídio Regional.
            Participaram da visita, além da comitiva designada pelo CNJ para a inspeção, a juíza da Vara de Execuções Penais, três promotoras de justiça, o assistente jurídico da SUSEPE, o delegado penitenciário e a Comissão do Advogado Criminalista, representando a OAB Santa Maria.
            O diretor do presídio foi submetido a um extenso questionário, o qual revelou alguns avanços, mas uma série de deficiências ainda pendentes de correção na Penitenciária Estadual de Santa Maria.
“O Código Penal é uma espécie de índice geral ou agenda dos sofrimentos humanos, sempre muito mais freqüentado pelos menos favorecidos.”

            A construção da Penitenciária seguiu projeto do Governo Federal, e tem um bom espaço para a ala de saúde, com gabinetes médicos, odontológicos e psicológicos bem definidos, contando, inclusive, com celas para presos em isolamento em razão de tratamento de saúde. Entretanto, faltam profissionais em todas as áreas. Em uma emergência, a solução ainda é remover o preso ao Pronto Atendimento Municipal.
            Existe uma marcenaria ainda inativa, que funciona hoje como depósito de colchões, mas que será uma oportunidade de trabalho aos presos. Hoje, caso um dos mais de 70 presos queiram trabalhar, as possibilidades são as tradicionais cozinha, limpeza.
            Um fato curioso diz respeito à lavanderia. As máquinas de lavar e secar compradas não passam pelas portas da Penitenciária, de modo que se encontram paradas esperando que um guindaste as eleve e coloque dentro do pátio interno.
            O sistema de segurança por câmeras é bom e funciona muito bem – como não era de se esperar diferente, em uma instituição carcerária o controle sempre se sobrepõe aos direitos dos apenados. Uma série de câmeras, todas operadas por controle remoto, percorrem todas as áreas comuns, podendo aproximar, afastar, girar e gravar as imagens.

“Todo o processo tem a grandeza da pessoa humana, para que o Direito está posto. E onde estiver a pessoa humana envolvida, tudo tem de ter a marca das coisas eternas. No processo penal, está a dolorosa estética do belo horrível."

            O parlatório – ainda que haja promessa para breve – ainda não tem interfone para a comunicação do advogado com seu cliente.
            A arquitetura da Penitenciária não foi corretamente adequada para o clima gaúcho. As paredes das celas são idênticas às paredes que isolam o corredor do pátio interno, vazadas, por onde passar tanto o mormaço quente, como o cortante minuano. Desde já, final do verão, as celas são adaptadas com cobertores, buscando um mínimo isolamento térmico. O que será no inverno? Está aí um problema para ser resolvido, em conjunto, com a Execução Penal, a SUSEPE, Ministério Público, relacionado à saúde dos apenados.
            O que mais toca, entretanto, não são os aparatos tecnológicos, ou as estruturas físicas. O que verdadeiramente choca é que uma penitenciária que está muito abaixo de sua lotação, ao passar de sua porta de entrada tem o mesmo cheiro morno de gente amontoada. O mito de que a superlotação é a responsável pela dificuldade de reincidência cai nos primeiros passos dentro desta estrutura que foi projetada para moer e dizimar dignidades. A individualidade e a alteridade dão espaço para um número gravado em um uniforme. Viraram estatísticas.
            Estudos de sociologia do encarceramento, em especial com Roberto Bergalli, evidenciam que com o desenvolvimento da sociedade industrial dos séculos XVIII e XIX, a livre oferta e demanda foi alimentada pela exploração do trabalho assalariado. Com isto, houve a necessidade de um controle punitivo calcado em um direito liberal que tivesse por foco a proteção de bens jurídicos individuais. Os excluídos do sistema, e, portanto, não proprietários de “bens” se tornaram a principal clientela do sistema penal.
            Diante disto, fortalecia-se o binômio cárcere e fábrica como eixo de uma disciplina social. Assim, quem não aprendia as regras do comportamento fabril, deveria, portanto, aprendê-lo no âmbito carcerário.
            Não se precisa ir longe para ver que todo o identificado por Bergalli tem manifestação concreta em nosso sistema de direito positivo. Todos que já advogaram no âmbito criminal já devem, em algum momento, ter utilizado como um dos fundamentos de pedido de liberdade provisória o fato de o réu “ter emprego lícito”. Na fase de execução progride a pena mais rapidamente aquele que trabalha. Nos regimes semiaberto e aberto torna-se imprescindível a demonstração de trabalho para galgar a liberdade.
            Em verdade, não há, nunca houve, uma pretensão de ressocialização baseada quase numa ética reformista de Calvino da salvação pelo trabalho justo e honesto. O que, inconscientemente, há é o reconhecimento legislativo (uma elite que, no mais das vezes está imune ao cárcere) de que aquela clientela é a clientela que põe a perigo os bens da elite, que presa deixa de trabalhar nos negócios da elite, e que, portanto, deve produzir algo em retorno ao prejuízo que está causando à sociedade.
É necessário e urgente focar a política de ressocialização no reconhecimento do apenado enquanto outro, pessoa dotada de individualidade, e, como tal, sujeita à toda a dignidade que o artigo 5º abstratamente reconhece. Finalizo com mais uma citação de Eliezer Rosa, o “Juiz Humano”, como todas as acima: Só é bela a sentença que realizar a Justiça, ou dela mais aproximar-se, com um mínimo de dor humana. Somos jardineiros de vidas humanas.”


Bruno Seligman de Menezes [Advogado Criminalista, Professor Universitário (FADISMA), Presidente da Comissão dos Advogados Criminalistas da OAB Santa Maria, Especialista em Direito Penal Empresarial (PUCRS), Meste em Ciências Criminais (PUCRS), Doutorando em Derecho Penal y Criminología (Univ. Buenos Aires)]

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